"Chegamos ao fim da canção" já cantava Manuel Cruz dos Ornatos Violeta. Este ano foi a coisa mais insólita que me lembro de ter vivido e, espero eu, a única deste género.
Não há palavras que descrevam nada disto que nos aconteceu, nem o estado emocional e psicológico que tudo isto nos causou e continua a causar. E sou eu uma abençoada, sem grandes razões de queixa.
Nesta altura do ano fico sempre muito heremita... gosto de estar em silêncio comigo mesma, pensar, rever, analisar, avaliar, traçar, perceber... lembrei-me numa destas introspecções da passagem de ano de 2019. Odeio passagens de ano, já há muito tempo, ou talvez desde sempre. E na passada, recordo-me de enfiar as passas todas na boca, como aliás faço sempre, e de dizer só para mim de olhos fechados: "eu só quero paz... nada mais, o resto faço eu, podem deixar".
E depois veio o Covid e tudo o que ele arrastou consigo. O vírus é apenas um pormenor. A maldade, o egoísmo, o cansaço, o desespero, a falta de dinheiro, um esforço exacerbado exigido a todos nós, o ter de saber lidar com o pior das pessoas que vem, nestas alturas, à de cima e mais um milhão de coisas são, a meu ver, o que massacrou este ano. Mas eu tive, dentro dos possíveis a paz que pedi. Porque até agora, já quase no "fim da canção", não tive azar, tive saúde, trabalho. Não tanto como precisava, mas não me faltou. Tive dinheiro... essa merda maldita que nos manipula, está ralinho, mas não faltou ainda para o mais importante. Portanto... sim, eu tive o que pedi.
Até porque, para termos paz, é necessário que primeiro façamos um percurso. E, na grande maioria das vezes, ele é árduo e tortuoso. E a paz que tanto ansiamos para nós não depende, também e tão-somente, do mundo lá fora, mas do nosso mundo interior. E o meu estava a precisar de um Covid para se equilibrar.
Consigo, agora, não responder a determinadas coisas, porque afinal de contas, eu não vou mudar o mundo e não vale mesmo a pena. Consigo, agora, desvalorizar um universo de pormenores que, há uns meses atrás, me tirariam noites de sono. Continuo uma stressada, mas mais consciente daquilo que deveras é importante para mim e, acima de tudo, do rumo que quero seguir.
O ano está a acabar. O Covid e tudo o que ele nos trouxe, não. Não para já. Mas eu espero, sinceramente, que as pessoas mudem, cresçam, que percebam que por trás de tudo na vida há uma razão, um propósito, e quando achamos que não, é porque ele nos está a passar ao lado.
Sentar-me no sofá com os meninos e o Pedro e na TV estar apenas o Spotify a tocar clássicos que nos remontam à infância; fazer sorrir os vizinhos do restaurante em frente à minha empresa com duas ou três parvoíces, porque afinal, na ausência dos meus pais, têm sido eles tomar conta de nós dois durante o dia; conversar com o Pedro sobre os jogos da bola, sem perceber patavina do que ele diz; ligar todas as semanas à madrinha do meu Miguel Maria e dizer-lhe que a adoro; ligar todos os dias a uma amiga e nunca deixar de terminar o telefonema com amor; conversar com os meus pais e sogros todos os dias... quiçá não seja hoje o último; ouvir um cliente que desabafa um problema qualquer; agradecer ao Professor da minha Maria Leonor porque hoje ela vinha especialmente feliz da escola; fazer uma carta à equipa da Creche do Miguel Maria porque se sacrificaram, deixando os delas em casa para cuidar do meu; fazer um teste Covid antes de ir ter com os meus pais no Natal, porque eu sou responsável pela saúde dos demais agora, nesta fase; aproveitar esse momento para gritar da janela OBRIGADO PELO VOSSO TRABALHO à equipa que nos testou, deixando-os emocionados e a sorrir; parar, simplesmente, a ouvir a chuva; observar o meu filho que dança ao som de Guns na sala de jantar; contemplar a gigante beleza da minha filha, concentrada num jogo qualquer; fechar os olhos ao sol e inspirar o nascer do dia mesmo atrás da máscara; passar no grupo para dizer que sinto saudades daquelas pessoas, mesmo que seja só por mensagem... não sei. A vida mudou.
Vamos vivê-la? Por favor?
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