Sento-me no sofá para fazer um orçamento. E, simultaneamente, para ouvir o mundo à minha volta e, com ele, os meus pensamentos.
A vizinha de cima bate com as portas como se estivesse a praticar um desporto daqueles em que o objectivo é partirmos blocos de madeira enormes...
A Maria fala sem parar - gabo a paciência do Santo António, seu Professor, coitado - numa linguagem que eu não conheço, porque quando tinha a idade dela não havia Blackpink, nem Roblox, nem Sims, nem Blaya, nem Kevinho... eu sei lá. "Vês mãe, ela fingiu que era uma blogger famosa e pediu o meu pet! Nem acredito, que lata!!! Na na na, txunameri, tan tan tan" e por aí fora.
Ao mesmo tempo, o Miguel corre desalmadamente pela sala, pára em frente ao armário dos CD's, tira-os todos em molhadas para o chão, arranca as prateleiras, dança um pouco ao som do "do you like that? tan ran ran hum hum" da irmã e, por fim, olha para mim de dedo a apontar para a testa e diz "cu cu, cu cu" que é, na sua linguagem maluco.
Ainda penso em dizer ao Pedro "amor, já viste esta notícia" mas, assim que abro a boca, o Miguel corre para cima de mim, enche o meu colo de brinquedos, enquanto agita os braços em frente ao ecrã do computador e grita "ai ai ai , não há!!!", a Maria levanta o som da sua aparelhagem vocal e... esquece. Fico-me apenas com os meus pensamentos.
O telefone vibra, mais um mail de um cliente, vou ao email e o Pedro começa um jogo de PS4. Aquele relato de bola no fundo, as cortinas a voar, porque o Miguel decidiu começar a corrida do esconde esconde, a Maria que comenta em Brasileiro - Deus me ajude - o jogo que não está a correr de feição...
Bzzzzzzzzzzzzzz!!!!!!!!!!!!!!! O Miguel desistiu das cortinas e activou a mota de corda. Brrrrrrrrr pi piiiii... e o camião escavador que lhe deu a tia Susana e.... pim pim pim... cairam as bolas todas ao chão.
Continuo concentrada neste orçamento importante e, de relance, vejo a minha "sala" coberta de brinquedos e bolacha esmagada. Esquece Sílvia, continua o teu trabalho para mais depressa conseguires dar-lhes atenção.
Só que, contrariado por qualquer pormenor que eu perdi no meio do orçamento, o Miguel inicia a sua hora de "carpidice" e atira-se para o chão a gritar desolado. Grita... bate com os pés e com as mãos no chão. Guincha, sem uma lágrima sequer. Tal pai, tal filha, um a jogar tranquilamente porque "ele tem de saber lidar com a frustração" (mas tem mesmo de ser agora?????? ouço o meu cérebro perguntar), o outro a cantar um inglês decorado baixinho, ora intercalado com um txa txa tun tstum, ora com um "fala sério bicho!"....
Mas estou mesmo a terminar o orçamento. E o Miguel continua a chorar. Mais uma bola de Natal para o chão com a raiva que nem ele sabe porque tem. Mais um "é falta paaaaaaaaaaaaaaaa, isto está viciado, pá!!!", mais um "tudo rosinha, tudo rosinha" e já está...
Dói-me a cabeça. Apetece-me levantar e trancar-me por dentro no quarto. Não, não, já sei!! Apetece-me embrulhá-los em papel de Natal e pendurá-los lá fora, no estendal.
Só que... eu ganhei o euromilhões. E sim, se não houvesse Covid e eu não contasse tostões vinha o terceiro. A minha tão desejada Maria Olívia... ou, quiçá, um João Maria para ajudar a rebentar o resto da árvore... e sabem, não consigo imaginar a minha vida em silêncio por mais do que 1 dia.
Não quero nem pensar na dor de perder isto, este tesouro, esta riqueza, este trio por que me levanto todos os dias da minha vida. Sou uma sortuda. E sim, ganhei o euromilhões.
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