O meu pai está muito longe de ser perfeito. Desde cedo que aprendi a perceber que os pais não são heróis, nem nada que se pareça, que pecam como nós, que têm defeitos, muitos deles terríveis, e que erram, quantas e quantas vezes de forma irreparável.
Mas o meu pai, José, é um ser humano absolutamente invejável, pese embora as suas humanas falhas. O meu pai é o meu pilar, o meu chão. É a ele que ligo, ainda hoje, aos 37 anos, cada vez que tenho medo, que estou em dúvida, que me sinto assustada. E ele tem sempre uma palavra sábia para me dizer. Sabe sempre a resposta e, quando não sabe, debate comigo, obriga-me a pensar e encontramos sempre juntos um caminho a seguir.
O meu pai, é uma pessoa extremamente doente. Nasceu com uma má formação cardíaca, os médicos diziam que ele tinha 9 anos de vida, apenas, e ele vai fazer se Deus quiser dia 9 de Fevereiro 69 anos. Toda a vida sofreu tanto, um dia após o outro, como uma bomba relógio, à espera do último sorvo de vida. Um lutador, agora cansado, mas sempre tão lúcido.
O meu pai, meu chão, tem um defeito grave. É tremendamente teimoso, para o bem e para o mal. E o meu pai, teimoso, teve de se habituar desde cedo a viver com este dito problema de saúde. Aprendeu, por exemplo, que comer bem e manter um peso equilibrado, ajuda a reduzir a gordura em torno do coração e, por conseguinte, facilita-lhe a circulação, o batimento cardíaco, etc. Aprendeu, também, que uma aspirina ajuda na coagulação do sangue e que o Verão é melhor que o Inverno e que o campo lhe cai melhor que a praia. E, com tudo isto, o Zézito acabou por ir fugindo, por entre os pingos da chuva, vencendo, ano após ano, e entendendo que os médicos por ele nada poderia fazer.
Lembra-me de o ouvir dizer "eu é que sei o que tenho. E quando 'eles' me apanharem lá, é para tirar este (coração) e por outro!". E com isto, o tempo foi passando, passando, passando, e ele deixou de ir ao médico. Um dia, já eu trabalhava com ele, cheguei de férias e dirigi-me à minha secretária para trabalhar. Costumávamos trabalhar lado a lado, ele na sua enorme secretária de chefe, eu na minha, mais pequenota. Disse-lhe bom dia e ele respondeu, compenetrado, "então carriça". Olhei de soslaio - porque o senti meio em baixo - e eis senão quando reparo que as mãos dele, sobre a mesa, estavam o dobro do tamanho. Quando me dignei a observá-lo mais a pormenor, percebi que o meu pai estava todo inchado, com uma cor estranha entre o amarelo e um esverdeado agonizante.
Lembro-me de sentir um pânico enorme a encher-me o peito e de gritar. Gritar muito. Com ele. De chorar enervada enquanto lhe dizia o quão egoísta ele era, por continuar a sobreviver sem rei nem roque, sem perceber que tinha uma filha, um genro, uma neta - na altura - uma empresa, e pessoas que precisavam dele e às quais ele, não sei porque raio, não se agarrava por nada deste mundo.
Foi então, que o meu teimoso pai, decidiu que sim, que era hora de ir ver o que se passava. Claro está que, aquela altura, foi já tardia, e que o nosso amigo e assertivo Dr. João Coimbra explicou que: além de todos os problemas contidos no coração, o meu pai tinha uma cirrose pelo excesso de medicação (porque o meu pai não bebe mais nada além de água), um défice no sistema imunitário - ou seja, os níveis de plaquetas estão sempre muitíssimo abaixo dos limites mínimos aceitáveis, e a ver íamos que outros problemas daqui adviriam.
Depois desta consulta, o pai começou a ser acompanhado no Hospital de Santa Marta, pela Dra. Luísa Branco. E foi então que se propôs o mitraclip, uma cirurgia por sonda, que colocaria 3 clipes na válvula mitral e, com isso, aumentariam a função desta pequena parte do coração, permitindo assim que todo ele andasse mais saudável, também. Marcou-se a dita lotaria, apenas aplicável a 5 pacientes por ano, com quadros clínicos seleccionados e muito graves. Assim que colocaram as sondas, os membros da equipa médica perceberam que as coronárias estavam todas entupidas e que, em vez dos clips, tinham de aplicar umas espécie de espirais dentro das veias para que elas não colapsássem a qualquer momento.
A recuperação do meu pai foi mais do que boa. Já subia e descia as escadas da empresa com menor esforço, andava muito mais bem disposto. Mas a minha avó deixou-nos... e o meu pai caiu num poço sem fim. No mesmo onde caí, ou deixei cair parte de mim. E quando voltou à mesa de cirurgia, o pai não aguentou. Uma intervenção que durava no limite 3h30m durou 9h inteirinhas, que me pareceram 9 anos. E durante este tempo, a equipa perdeu o pai. Dizem que os médicos não são Deus, mas eu acho que o têm dentro de si. Aliás, eles e todos os profissionais de saúde. Porque esta equipa foi buscar o meu pai ao outro lado e voltou a trazê-lo para junto de mim.
A Dra. Luísa Branco saiu do bloco numa espécie de fato verde, estranho, com uns pesos pendurados, uma touca, umas máscara e mais uns apetrechos. A mulher escorria água por todos os poros do seu cansado corpo. Quando a vi, ri-me e disse em tom de brincadeira, como é meu apanágio: "então Dra. avariou o AC do bloco?". Ela suspirou de forma quase desesperada e disse apenas gesticulando: "você brinca... se você soubesse o trabalho que o seu pai nos deu! O coração do pai é uma coisa... com uma anatomia que nós nunca tínhamos visto, não há nada que esteja no sítio que deveria estar! Fizemos o nosso melhor!".
Foi neste segundo que eu percebi perfeitamente que aquela intervenção jamais iria sortir os efeitos previstos. Ainda lhe perguntei porque tinham demorado tanto. Ela mudou de assunto - até porque só mais tarde vim a saber que tiveram de o reanimar...
Depois dela, uma enfermeira, cujo nome não me consigo lembrar infelizmente. Sorridente, disse-me: "você tem um pai extraordinário!". Perguntei: "ai sim, Enfermeira, então?". E ela concluiu embevecida: "Então depois de tudo o que passou ali dentro, o homem acorda, olha para nós todos, e ainda atordoado diz 'Ah, estiveram aqui este tempo todo... meu Deus, mas vocês almoçaram?'!!". E ria-se. E, de facto, o meu pai, o meu pilar, o meu chão, o meu companheiro, o meu exemplo de vida, é A pessoa.
O resto, o resto da história vou-vos contando, conforme a emoção me deixar.
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