Posso dizer que tive uma infância com inúmeros contratempos, problemas, mas feliz. Não foi perfeita, nem sempre equilibrada, mas não guardo rancores desse tempo.
De um modo geral, brinquei, passeei, comi fora, mexi na terra, apanhei bolotas na mata com a minha avó, percorri o país com os meus pais de carro, acampei, conheci os animais, as flores, as árvores, vi desenhos animados, escrevi, fiz experiências malucas, asneiras, fiquei de castigo, levei umas galhetas - muitas delas bem dadas, que eu volta e meia passava-me e excedia aquilo que era o considerado o limite da criatividade - enfim. O normal.
A Maria Leonor, graças a Deus, teve até Março do ano passado uma infância dita normal. Fico nos avós quando teve de ficar, passeou com os pais até se fartar, fez praia, brincou no campo, no meio dos pinhais, no chão, sujou-se, rasgou a roupa, caiu, levantou-se, pintou, desenhou, viu bonecos - muito mais do que eu e do que ela mesma deveria - comeu fora, foi ao cinema, a feiras medievais - de que ela tanta falta sente, a "feira do lobo" como lhe chama até hoje - eu sei lá. A Maria fez tudo o que nós fizemos e o que não fizemos, mas que quisemos que ela pudesse experimentar. Já o Miguel... teve apenas 7 meses para ser livre. E depois, casa! Mas este post é sobre ela. A nossa princesa.
A Maria Leonor foi um bebé difícil, tão difícil que nós sempre achamos que nos ficaríamos por ali, pese embora sejamos ambos filhos únicos e tivéssemos programado as coisas para 2 ou 3 filhos. A vida não se proporcionou. Infelizmente, nos dias que correm onde comem 2 não comem 3, nem 4, nem 5. Porque não se trata só de comer, há todo um mundo em redor da maternidade e do que isso nos exige, versus as vidas que temos, os horários que não temos, e por aí adiante.
Com 6 anos, a Maria Leonor conheceu o "AG", o novo professor. A primeira coisa que pensei, eu mãe, quando o vi foi: "oxalá seja um bom professor, sensível o suficiente, para ficar com a minha vida nas mãos...". Não poderíamos ter desejado melhor, muito francamente. O "AG" é um Ser Humano extraordinário, com as qualidades e defeitos de qualquer um de nós, mas de uma qualidade e honestidade absolutamente raras. Quando integrou a turma do 1º ano, a Maria começou a aprender através da arte. A arte que ela tanto preza, não fosse nossa filha. E mudou. Mudou muito, esta menina.
A Maria Leonor deixou de ser a criança birrenta e difícil que era. Começou, aos poucos, a pensar pela sua própria cabeça, com todas as limitações normais da sua idade, com todos os dramas naturais da sua personalidade. Mas a pensar. Aos poucos, percebemos que a Maria questionava muitas das coisas que lhe dizíamos, que a mandávamos fazer. Nem sempre com bons modos, verdade, mas apenas em casa, porque na escola ela é uma Santa. E ainda bem. É sinal que fizemos um bom trabalho.
Inicialmente, a coisa demorou a encaixar. Os primeiros "questionamentos" faziam-nos alguma confusão. Havia sempre uma pergunta por trás de qualquer indicação nossa, muitas vezes, uma sugestão. Eu, que nunca questionei coisíssima nenhuma aos meus pais... ora esta! Mas, devagar, fomo-nos adaptando a esta nova versão daquele bebé que gritava das 7h da manhã às 7h da manhã do dia seguinte.
A criatividade da Maria Leonor é invejável. A capacidade que ela tem, agora, aos 8 anos de pensar pela sua própria cabeça é absolutamente irrepreensível. Mesmo que lhe digamos seja o que for, ela pensa sobre o assunto e, caso não concorde, ela expõe isso, umas vezes mais segura, outras a medo, mas expõe. E propõe. E negoceia connosco! Não, ela não nos manipula. Ela simplesmente faz-se ouvir.
E nós, pais, que tivemos uma educação completamente diferente, deixamos. Porque consideramos que para ser uma adulta de sucesso, a Maria Leonor precisa de aprender a gostar de si mesma, a aceitar-se como é, a mudar rumo ao que deseja ser, a confiar nas suas capacidades e, acima de tudo, a não assumir estupidamente tudo o que lhe dizem. Como poderíamos querer outra coisa para um filho nosso? Chegada a idade da adolescência, todos eles são influenciáveis. Se não os ensinarmos a questionar, a pensar, a avaliar e a criticar o que os rodeia, integrarão num rebanho qualquer que lhes passe à frente e perder-se-ão como acontece tantas e tantas vezes.
Não quer dizer que a Maria Leonor não venha a ter problemas como todos os outros adolescentes. Não é especial, nem extraordinária, nem imune à estupidez. A vida muda-nos e nós, pais, estamos bem alerta para isso. Mas esta preparação não tem preço, sobretudo face ao que estamos todos a viver. Saber escutar, pensar, reflectir e questionar, é fundamental, cada vez mais neste mundo.
Ler um texto da Maria Leonor é um orgulho só. E não, não é porque não tem erros ortográficos, porque os tem, muitos, os normais da idade dela. É pelo seu conteúdo. Pelo por vezes complexo pensamento que se esconde atrás daquelas palavras. Muitas delas, que nós nem sabíamos que ela conhecia, quanto mais saberia encaixar numa dissertação qualquer.
Este é o nosso orgulho. E não o conseguimos sozinhos, mas com a ajuda de alguém que vê o mundo fora da caixa. O que dá que pensar... o tempo urge... ele corre para longe de nós, escorre-nos por entre os dedos, sem que o consigamos apanhar. Não vale a pena correr, temos de partir a tempo. Olho em volta, para este mundo onde vivemos, e desejo ardentemente que todos os pais cultivem isto nos seus filhos. Que os obriguem a pensar com a sua própria cabeça. Que os motivem a questionar as coisas, a avaliar todos os pontos de vista, a escolher aquele que lhes parece mais justo, mais lógico e, por fim, a perceber e saber explicar o porquê de terem seguido aquele caminho. O porquê de, para eles, em dado contexto, aquele ser o percurso mais óbvio.
Se ela pudesse voar, tinha a imaginação de todas as crianças... escreveu na parede da sala (sim, porque nós deixamos que o fizesse e temos a parede da sala mais bonita de todo o mundo!).
Voa amor... voa. Quando voares para longe e olhares para nós cá em baixo, feliz, confirmarás que o nosso trabalho foi concluído com sucesso.
Comentários
Enviar um comentário
Obrigada pelo seu comentário. O mesmo será aprovado e publicado após revisão.