Esquece!... Sou um boneco humano que entrou em piloto automático. Não me apetece, simplesmente, coisíssima nenhuma. Já não se aguenta, não há vontade... nem criatividade para se ir buscar motivação a lado nenhum.
O buraco é cada vez maior e eu estou enterrada nele até às orelhas. Preciso de pensar depressa numa reinvenção da minha empresa. Preciso de arrumar aquele maldito cesto de roupa que olho de soslaio diariamente até ter coragem de agarrar a sério. Preciso de pensar em refeições que eles gostem, mas a imaginação já me falta...
Preciso de arrumar a louça que está na máquina, acabada de lavar. E aspirar pela milionésima vez o raio do chão que tem "ceninhas" pretas não sei vindas de onde... aspirei há 3h... já está na mesma. De onde vêm estas ceninhas caramba?
Preciso fazer pares da molhada de meias que escondi no guarda-fato... não sei como é possível eu ter uma técnica infalível e, mesmo assim, a merda das meias ter-se perdido às páginas tantas... se calhar até as meias sofrem com o confinamento...
Preciso de desligar o telefone. Ter tempo e vontade para me sentar com os meninos e fazer um jogo. Bolas, será possível que estejamos todos em casa e eu tenha menos tempo agora do que tinha antes? Preciso de desligar o mail do trabalho antes das 21h45... hoje não falha. Se estivesse na empresa vinha embora e o email ficava à minha espera para o dia seguinte!
Roi as unhas todas... que nojo de mãos. O meu cabelo enlouqueceu... estou cheia de brancos, lavo, ponho amaciador, mas este ninho de ratos e nós parece uma montanha de palha de aço... preciso parar de ter compulsões bulímicas todas as noites. Já cá cantam mais 6Kg desde Março do ano passado. Onde raio está a Sílvia que eu era?
Preciso de parar de acordar a meio da noite com o coração aos pulos sem saber porquê. Parar de ter ataques de pânico que me causam espasmos nas pernas enquanto tento ver mais um episódio tardio da Modern Family. O que se passa? Terei perdido o juízo?
Está a escurecer. É preciso fechar os estores da casa, acender as luzes, ligar o aquecimento... está frio. Muito frio. Mas aguenta-se mais umas horas, não vá aumentar demasiado a porra da conta do gás e da luz e lá vamos nós pelo cano abaixo.
Preciso que a cabeça pare de falar tão alto. Pensamentos de há anos. Saudades da minha avó. Preocupação com os meus pais que simplesmente não vejo, com quem simplesmente não privo. Preciso de tirar peso dos ombros. Não ficar aflita pelos amigos que estão na linha da frente... não pensar mais acerca do desemprego do marido. Esquecer por instantes a Bulimia, a casa cheia de brinquedos no chão, again! Merda para isto que nunca mais acaba.
Gostava de por aqui um filtro qualquer nesta vida... um daqueles que tornam a imagem mais suave. Cala-te, Sílvia! Falas de barriga cheia! Tens a vida que muitos gostariam de ter, aproveita-a. Mas então, porque é que sinto este nó no estômago? esta revolta? Este grito interior que não saindo, faz acelerar o coração?
Não devia beber tantos cafés durante o dia. Talvez seja isso. Talvez esteja só com medo do rumo que isto está a levar... talvez devesse estar-me a cagar para isto tudo como tantos por aí. Mas eu tenho efectivamente medo disto. Do vírus, das finanças, do descalabro emocional que isto nos está a causar. Será que quando isto passar vamos voltar a ser normais? E a viver descontraidamente?
O Pedro meteu duas máscaras na cara e levou o Miguel à rua. Atrás do nosso prédio é deserto... o bebé está fechado desde 4 de Janeiro em casa... está insuportável e eu, Deus me perdoe, já não o posso ouvir. Passou a ser o baby 2 modos: a dormir ou a gritar. Muito grita este menino, Deus... deve estar farto de estar trancado. Entre 4 paredes, num T2 de 80m2. Estou cheia de medo que, ao tentarmos fazer-lhe bem o prejudiquemos. E se apanharem os dois Covid por ir aqui atrás andar? Mais valia não os ter deixado ir... e aguentar a irritabilidade dele. E a minha.
Quando é que isto acaba?
Como é possível que tenha comprado 180 euros em comida há 2 semanas e já não haja praticamente nada? Dá para comerem menos se faz favor? As malditas bolachas sumiram. O leite foge, a água também, o álcool está no fim, já não há iogurtes quase, nem fiambre, nem pão. Oh que caraças! Se encomendar hoje só entregam dia 18... mas hoje é dia 3... não podem mesmo antes? É que eu não quero ir ao super... por favor, não me obriguem a ter de ir ao super... vá lá. Eu pago mais pela entrega, dá para ser?
Se eu plantar bolachas na varanda elas crescem? A Bimby avariou e eu sou uma nódoa na cozinha...
Respira... respira Sílvia. Não passes nada disto para fora. És o pilar da casa... da família. Se cais, caem todos... mas um colo dava jeito agora. Se o vinho não engordasse tanto... alimentava-me dele nos próximos tempos. Podia ser que adormecesse esta angústia esquisita...
Quando é que isto acaba?
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