Hoje é o dia em que pegas fogo a tudo. Amanhã, é o dia em que colhes os teus próprios cacos e te reconstróis!
Há um momento na vida em que me parece que a única coisa que resta é olhar para o céu e esperar uma resposta milagrosa.
O momento em que tens a sensação de estar a patinar num lago gelado, escorregando a cada centímetro que avanças, caindo a cada metro, voltando a levantar-te e a cair novamente e por aí fora.
Um ano. Um ano de pandemia, de confinamentos e desconfinamentos, de evolução espiritual e interior, de desafios que nunca pensaste travar, de solidão, isolamento. Apenas num ano, 12 mesinhos, respiraste fundo mais vezes que na tua vida toda. Apenas em 12 meses reequacionaste tudo o que tens, tudo o que querias e já não sabes se queres, ponderaste e voltaste a ponderar os limites das tuas forças, da tua resistência, tudo, toda a tua vida.
Até aqui o segredo foi sempre olhar em volta e perceber que há milhares se não milhões de pessoas em situações dolorosas, de miséria, de terror, de fome, de desespero, pessoas milhões de vezes pior do que tu, e agradecer. Pela vida plena e maravilhosa que tens. Até aqui resultou. Mas o grau de sacrifício no teu contexto de vida é já tamanho, que neste momento, pensar só que tens a vida que muitos gostariam de ter já não chega, não te ajuda, não te enche de coragem nem de forças extra.
O momento em que percebes que o limite da tua resiliência já foi severamente ultrapassado, mas que não podes desistir, porque não te podes dar a esse luxo - já não falando de direitos - é, de facto, um momento crucial para ti, para os que te rodeiam e para os que vão entrando na tua esfera pela primeira vez.
Já não consegues facturar mais, por muito que te esforces, não consegues ter a casa arrumada, nem tampouco limpa, pelo menos não por mais do que 1h seguida. Já não consegues ignorar as vezes que os teus filhos te interrompem o maldito teletrabalho, as vezes em que deixaste de conseguir respirar fundo e desataste aos gritos, fazendo deles que eram o teu foco crianças infelizes - ainda que 10 minutos depois já não seja nada com eles... já não consegues contabilizar as vezes que te enganaste no teu trabalho porque não tens o direito de o executar concentrada, já não tens mão nas refeições que preparas e nunca são suficientes, nos molhos de roupa lavada para arrumar - que já nem sequer equacionas passar a ferro. Já perdeste a conta às vezes que deixaste de trocar uma fralda por causa de um cliente, de um pedido, de uma reclamação.
Já nem sabes como te chamas, porque todos te chamam e te pedem alguma coisa. Acima de tudo, já não te lembras de quem és, da última vez que tomaste banho sem que te entrassem de rompante porta a dentro para gritar acerca de mais uma quezília de irmãos sem qualquer sentido. Já não recordas o último "número 2" sozinha, nem a última vez que aplicaste umas gotas hidratantes nas pontas do cabelo, um creme da tromba... a última vez que te trataste como pessoa, como ser humano.
Já não aguentas ouvir gritos, birras, pedidos, telefones, notificações, já nem sequer suportas o teu próprio respirar. Já não achas graça a nada, porque não tens tempo para descontrair e rir, seja lá com o que for, seja lá do que for. És um robot, em piloto automático a cumprir tarefas, umas atrás das outras.
O maldito momento em que deixaste de ser uma pessoa, com alma, com direito a descansar, a dormir uma noite completa, sem acordar com pesadelos, o dia em que já não consegues fazer planos, porque daqui a 1h sai uma nova missiva sobre esta merda de pandemia e tu já eras... o dia em que um vírus que nem um ser humano é passou a controlar a tua vida, o teu desempenho profissional, como mãe, como mulher, as tuas finanças... a tua existência. Um filho da mãe de um zombie que te roubou os sonhos todos.
Era um ano programado. Um bebé acabado de nascer, uma reestruturação empresarial cheia de boas intenções e de boas ideias, uma casa perfeitamente controlada. Já não há abraços, nem jantares com amigos, em casa, a beber uns copos de vinho à saúde do que melhor tínhamos na vida: a nossa liberdade individual.
Já não consegues pensar, organizar pensamentos, não consegues confiar, nem ter boas energias. Já não consegues ouvir os legos que caem no chão. Não consegues nada. És um farrapo de gente. Um resto do que sobra de ti hoje, depois disto tudo. E uma incógnita sobre o que serás daqui por mais um ano, quando, espero eu, tudo isto for uma lembrança dura para ti.
É só um dia. Uma fase. Uma semana difícil. É só mais um esforço. Levanta-te, amanhã, puxa-os até cá cima e segue. Pára de te lamentar de barriga cheia, tens tudo para ser feliz. Mas hoje, podes. Podes simplesmente terminar o teu dia sentada no teu sofá todo riscado com marcadores, olhar em volta para o chão cheio de migalhas de bolacha esmagada e lamentar-te. Porque deixaste de saber se és ou não capaz.
Chora hoje, cai no vazio que sentes bem lá no fundo do que sobra de ti. Enche-te de lama. Estrabucha, grita em silêncio, fecha os olhos, pensa em desistir, em mandar isto tudo para o ... aquele sítio. E amanhã, sê tu mesma, como te conheceste há um ano atrás.
Hoje é o dia em que pegas fogo a tudo. Amanhã é o dia em que colhes os teus próprios cacos e te reconstróis!
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